Fonte: Conjur
As pessoas têm o
direito de serem esquecidas pela opinião pública e até pela imprensa. Os atos
que praticaram no passado distante não podem ecoar para sempre, como se fossem
punições eternas. A tese do direito ao esquecimento foi assegurada em dois
recursos especiais julgados pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. As
decisões, unânimes, marcam a primeira vez que uma corte superior discute o tema
no Brasil.
Foram dois
recursos ajuizados contra reportagens da TV Globo, um deles por um dos acusados
mais tarde absolvido. O outro, pela família de estuprada e morta. Os familiares
sentiram que não havia necessidade de resgatar a história, que aconteceu há
muitos anos e não faz mais parte do conhecimento comum da população.
O direito ao
esquecimento não é recente na doutrina do Direito, mas entrou na pauta
jurisdicional com mais contundência desde a edição do Enunciado 531, da VI
Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF). O texto, uma
orientação doutrinária baseada na interpretação do Código Civil, elenca o
direito de ser esquecido entre um dos direitos da personalidade. A questão
defendida é que ninguém é obrigado a conviver para sempre com erros pretéritos.
A grande
dificuldade da discussão do direito ao esquecimento é que não se pode falar em
regras, ou em tese. São sempre debates principiológicos que dependem muito da
análise do caso concreto. Em linhas gerais, o que o Enunciado 531 diz é que
ninguém é obrigado a conviver para sempre com o passado. Nessa linha que
argumenta o ministro Luis Felipe Salomão, relator dos dois recursos especiais
que discutiram a tese no STJ. “Não se pode, pois, nestes casos, permitir a
eternização da informação. Especificamente no que concerne ao confronto entre o
direito de informação e o direito ao esquecimento dos condenados e dos
absolvidos em processo criminal, a doutrina não vacila em dar prevalência, em
regra, ao último”, escreveu.
Salomão discorre
que a questão é uma das decorrências do conflito entre a liberdade de imprensa
e o direito à intimidade. Ao mesmo tempo em que a Constituição assegura que a
imprensa é incensurável e goza de total liberdade, encontra barreiras em
princípios como a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da
imagem das pessoas.
“E é por isso
que a liberdade de imprensa há de ser analisada a partir de dois paradigmas
jurídicos bem distantes um do outro. O primeiro, de completo menosprezo tanto
da dignidade da pessoa humana quanto da liberdade de imprensa; e o segundo, o
atual, de dupla tutela constitucional de ambos os valores”, afirma o ministro.
Mas Salomão
pondera que “a história da sociedade é patrimônio imaterial do povo” e o
registro dos fatos, portanto, é um direito da sociedade. O registro de crimes
continua o ministro, é uma forma de a sociedade analisar a evolução de seus
próprios costumes e de deixar para as futuras gerações marcas de como se
comportava.
O tempo
Um dos grandes argumentos contra a aplicação da tese do direito ao esquecimento em casos concretos é que, se um fato é lícito quando aconteceu o passar do tempo não pode torná-lo ilícito. Fosse assim, argumentam os opositores, fatos históricos prescreveriam.
Um dos grandes argumentos contra a aplicação da tese do direito ao esquecimento em casos concretos é que, se um fato é lícito quando aconteceu o passar do tempo não pode torná-lo ilícito. Fosse assim, argumentam os opositores, fatos históricos prescreveriam.
Mas o ministro
Luis Felipe Salomão afirma que “a assertiva de que uma notícia lícita não se
transforma em ilícita com o simples passar do tempo não tem nenhuma base
jurídica”. Ele explica que a passagem do tempo, no campo do Direito, é o que
permite a “estabilização do passado”, “mostrando-se ilícito sim reagitar o que
a lei pretende sepultar”.
Salomão empresta
a tese da prescrição no Direito Penal para explicar por que fatos antigos
perdem o interesse da sociedade: “Ao crime, por si só, subjaz um natural
interesse público, caso contrário nem seria crime. E esse interesse público,
que é, em alguma medida, satisfeito pela publicidade do processo penal, finca
raízes essencialmente na fiscalização social da resposta estatal que será dada
ao fato”.
Ele explica que “o interesse público que orbita o fenômeno criminal tende a desaparecer na medida em que também se esgota a resposta penal conferida ao fato criminoso, a qual, certamente, encontra seu último suspiro, com a extinção da pena ou com a absolvição, ambas irreversivelmente consumadas”.
Ele explica que “o interesse público que orbita o fenômeno criminal tende a desaparecer na medida em que também se esgota a resposta penal conferida ao fato criminoso, a qual, certamente, encontra seu último suspiro, com a extinção da pena ou com a absolvição, ambas irreversivelmente consumadas”.
Esquecimento
para todos, Salomão também reconheceu o direito ao esquecimento dos familiares.
Concordou com as alegações de que a reportagem trouxe de volta antigos
sentimentos de angústia, revolta e dor diante do crime, que aconteceu quase 60
anos atrás.
Portanto, o
ministro reconhece o direito à família de não ver o caso ser lembrado pela
imprensa, ainda que dentro do contexto histórico.
Salomão também
afirmou que, se o tempo se encarregou de tirar o caso da memória do povo,
também fez o trabalho de abrandar seus efeitos sobre a honra e a dignidade dos
familiares. “No caso de familiares de vítimas de crimes passados, que só querem
esquecer a dor pela qual passaram em determinado momento da vida, há uma
infeliz constatação: na medida em que o tempo passa e vai se adquirindo um
'direito ao esquecimento', na contramão, a dor vai diminuindo, de modo que,
relembrar o fato trágico da vida, a depender do tempo transcorrido, embora
possa gerar desconforto, não causa o mesmo abalo de antes”, afirmou.
“Os
acontecimentos geralmente deixam marcas e também podem estabelecer marcos,
demarcatórios de épocas e fases. (EM).”
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