MEMÓRIAS
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O fluxo do tempo
pode ser considerado: iniciando do passado em direção ao futuro; ou desde o
futuro em direção ao passado. Em qualquer situação, o fluxo atravessa um ponto
fugaz denominado presente. O presente é intangível, imaterial, porém é o único
momento real que vivemos. O passado já foi e o futuro ainda não é! O passado se
resume em memórias e o futuro em expectativas e perspectivas. Não há tempo sem
um conceito de memória; não há presente sem um conceito do tempo; não há
realidade sem memória e sem uma noção de presente, passado e futuro.
Memória é o nosso senso histórico e nosso senso de
identidade pessoal. Eu sou quem sou, porque Eu me lembro quem sou. A memória é
a conservação do passado através de imagens ou representações que podem ser
evocadas mentalmente. As experiências pessoais que de alguma maneira se
armazena no cérebro. A aquisição de memórias denomina-se aprendizado. As
experiências são aqueles pontos intangíveis que chamamos presente. Não há
memória sem aprendizado, nem há aprendizado sem experiências. Nada há no intelecto que não tenha
estado antes nos sentidos. As memórias são fruto do que alguma vez percebemos
ou sentimos. Os sonhos, que são em boa parte recombinações estranhas de memórias,
provêm do que alguma vez sentimos ou percebemos. Os planos e projetos também.
A variedade
e quantidade de experiências possíveis é enorme e a variedade de memórias
possíveis é também enorme. Não é possível medir memórias em forma direta. Só é possível
avaliá-las medindo o desempenho em testes de evocação. Nos animais, a evocação
se expressa através de mudanças comportamentais; no homem, a evocação pode
também ser medida através do reconhecimento de pessoas, palavras, lugares ou
fatos. É evidente que a evocação de uma alteração comportamental implica num
prévio reconhecimento, e que todo reconhecimento implica numa alteração
comportamental real ou potencial.
O aprendizado e
a memória são propriedades básicas do sistema nervoso; não existe atividade
nervosa que não inclua ou não seja afetada de alguma forma pelo aprendizado e
pela memória. Aprendemos a caminhar, pensar, amar, imaginar, criar, fazer
atos-motores ou ideativos simples e complexos. A nossa existência depende de
que nos lembremos de tudo isso. O aprendizado e a memória são atividade nervosa
superior.
A redução da
memória a modelos, sem referencia a processos nervosos assim como a sua redução
a fenômenos puramente celulares, sem referência a processos cognitivos ou
comportamentais, populares há alguns anos, tem hoje só interesse histórico Isto
se deve a vários fatores. Um é o refinamento crescente das técnicas e dos
conceitos neuropsicológicos que demonstraram que não é possível encaixar a
enorme variedade de memórias possíveis dentro de um número limitado de esquemas
ou modelos, nem reduzir seu alto grau de complexidade a mecanismos bioquímicos
ou processos psicológicos únicos ou simples. Foi-se a época em que se julgava
possível explicar todos os aprendizados ou memórias por meio de reflexos
condicionados, ou por meio de uma certa e determinada alteração molecular ou
estrutural. Um fator importante, na queda dos modelos que pretendiam analisar a
memória ignorando o sistema nervoso, é a reiterada demonstração de que é
possível afetá-la profundamente, em forma às vezes muito específica, tanto por
lesões nervosas precisas e localizadas. Como por drogas ou substâncias
endógenas cujo sítio e mecanismo de ação são conhecidos.
Os mecanismos do armazenamento das memórias são tão misteriosos dando
ensejo a uma metáfora comparando a memória com a luz das estrelas. A memória
como um estado do cérebro que persiste além da estimulação sensorial e é capaz
de influenciar sua atividade subseqüente.
A variedade
de memórias possíveis é tão grande, que é evidente que a capacidade de
adquirir, armazenar e evocar informações é inerente a muitas áreas ou
subsistemas cerebrais, e não é função exclusiva de nenhuma delas. É óbvio que
diferentes sistemas sensoriais, associativos e motores participam em cada um
destes aprendizados e nas correspondentes memórias. Usamos a via auditiva para
aprender música, mas não para reconhecer um rosto; usamos o sistema-motor para
aprender e evocar movimentos, mas não odores. Conseguimos evocar em contextos
muito diferentes daqueles em que adquirimos cada informação. Aprendemos
medicina nas aulas, rios livros, vendo preparados histológicos, ou estudando
análises de sangue; evocamos essa informação junto a um paciente desconhecido,
numa cama de hospital, ou ouvindo uma palestra em inglês, num país estrangeiro.
Aprendemos tonotopias e podemos transpô-las, na evocação, a outros lugares da
escala tonal. Podemos evocar a tonotopia na imaginação, com a voz, ou com um
violino; utilizando neurônios totalmente distintos em cada caso. Não parece
digna de crédito a noção de que todas as memórias sejam explicáveis por um
único e determinado processo molecular ou biofísico, nem pela constituição de
novas vias nervosas ou novas sinapses ou alterações permanentes da condutância
iônica em tal ou qual dendrito. Cada via nervosa é diferente, do ponto de vista
dos neurotransmissores envolvidos, de suas consequências biofísicas. É óbvio
que algo aprendido usando determinada(s) via(s) pode ser evocado utilizando
outras. Algumas memórias consistem na inibição de respostas naturais ou inatas;
outras, num aumento dessas respostas ou na geração de respostas novas; outras
que não envolvem nenhuma resposta direta ou aparente. Há pacientes com falhas
globais de memória, e outros com distúrbios limitados a uma única modalidade
sensorial, ou ao reconhecimento de animais, mas não de objetos. Determinadas
pessoas possuem uma excelente memória para números e não para faces; ou
vice-versa. Tudo isto indica que diferentes memórias utilizam diferentes vias e
processos tanto para sua aquisição como para sua evocação.
Há certas
estruturas e vias, o hipocampo, a amígdala, e suas conexões com o hipotálamo e
o tálamo, que regulam a gravação e evocação de todas, de muitas, ou pelo menos
da maioria das memórias. Este conjunto de estruturas constitui um sistema
modulador que influi na decisão, pelo sistema nervoso, ante cada experiência,
de que deve ser gravado e de que deve ou pode ser evocado. O hipocampo e a
amígdala estão interligados entre si e recebem informação de todos os sistemas
sensoriais: em parte provenientes do córtex, e, em parte, de forma inespecífica
quanto à modalidade sensorial, desde a formação reticular mesencefálica. O
hipocampo e a amígdala projetam ao hipotálamo, e, através deste, ao tálamo e,
finalmente, ao córtex.
Há, talvez,
tantos tipos de memória como tipos de experiência; não obstante, muitos as
classificam de diversas formas. Ao classificar, reduzimos as coisas a nossa
própria dimensão, não à dimensão que as coisas têm. Classificar é, de fato, uma
operação que implica em esquecer: esquecer diferenças para sustentar
semelhanças. Os orientais acham graça da tendência dos ocidentais em
classificar coisas, e pôr um nome em tudo; será por isso, talvez, que em muitos
lugares do Oriente não põem nome nem nas ruas.
Para
entender a formação de memórias a partir de experiências, é preciso considerar
quatro aspectos fundamentais:
->Recebemos
informações constantemente, através de nossos sentidos; mas não memorizamos
todas. Há, portanto, um processo de seleção prévio à formação de memórias, que
determina quais informações serão armazenadas e quais não.
->As
memórias não são gravadas na sua forma definitiva, e são muito mais sensíveis à
facilitação ou inibição logo após sua aquisição que em qualquer outro período
posterior.
->As memórias são também muito mais sensíveis à
incorporação de informação adicional nos primeiros minutos ou horas após a
aquisição.
->As
memórias não consistem em itens isolados, senão em registros mais ou menos
complexos. Não lembramos cada letra de cada palavra isoladamente; senão frases
inteiras.
Os mecanismos
que selecionam as informações que serão eventualmente armazenadas incluem o
hipocampo e a amígdala. O hipocampo intervém no reconhecimento de determinado
estímulo, configuração de estímulos, ambiente ou situação, se são novos ou não,
e, portanto, se merecem ou não ser memorizados. De fato, só reconhecemos que aprendemos algo
quando se trata de algo novo; não de algo que já sabíamos. A amígdala participa
dos processos de seleção como consequência de sua função moduladora da
consolidação.
Podemos
perceber muitos estímulos ao mesmo tempo, em diversas combinações; e podemos
até formar várias memórias novas simultaneamente; algumas, porém, serão melhor
consolidadas que outras. A consolidação é modulável. Os processos de modulação
são importantes porque são muito melhor conhecidos que os sistemas de
armazenamento ou evocação; e porque, de fato, a única forma disponível de
afetar a memória quantitativamente, ou até qualitativamente, é através de
variáveis que agem sobre os sistemas moduladores. As únicas bases biológicas da
memória que conhecemos são, na verdade, as bases biológicas da modulação; e,
embora não nos sirvam para entender como as memórias se armazenam, servem-nos
para tratá-las quando se encontram diminuídas.
As memórias adquiridas em estado de alerta e com certa carga emocional
ou afetiva são melhor lembradas que as memórias de fatos inexpressivos ou
adquiridas em estado de sonolência. Os estados de alerta, afetivos e emocionais
se acompanham da liberação de hormônios periféricos e neurotransmissores
centrais. Várias dessas substâncias afetam a memória. Numerosos experimentos
com drogas que liberam, mimetizam ou bloqueiam sua ação demonstraram que as
mesmas não atuam durante a aquisição, senão no período imediatamente posterior,
afetando a consolidação. Enquanto estão sendo consolidadas, ou ainda depois, as
memórias podem incorporar informação adicional.
Doses ou concentrações sanguíneas elevadas de
adrenalina, adrenocorticotrofina ou vasopressina no período posterior à aquisição,
podem também inibir a evocação.
Além da
incorporação de informação proveniente da influência de substâncias endógenas
liberadas pelas próprias experiências, estas podem incorporar, depois de terem
sido adquiridas, informação proveniente de outros aprendizados. As memórias não
se adquirem isoladamente, senão uma após a outra: a existência diária pode ser
descrita como uma continua experiência, ou como uma continuidade de
experiências consecutivas. Muitas vezes, memórias adquiridas em forma
consecutiva podem se interligar de tal maneira que, depois, o indivíduo as
recorda como uma experiência única.
A
incorporação de informação cognitiva às experiências ocorre fundamentalmente
nas primeiras 3 horas após cada experiência, tanto no homem como em animais.
As memórias
podem ser também modificadas, os registros podem ser ampliados posteriormente,
às vezes anos depois. Uma nova experiência, ou evento, ou detalhe, acrescenta
ou tira informação de uma memória velha. É possível que a evocação também
altere as memórias. Há muita evidência disso. A memória, o registro que
guardamos de determinado fato pode não ser a do fato em si, senão da terceira
ou da vigésima vez que o evocamos.
O
esquecimento é o aspecto mais saliente da memória: é muito mais o que
esquecemos que o que recordamos. Vários fatores causam esquecimento. Um,
clássico, é a extinção, ou perda geralmente gradativa de uma memória por sua
evocação reiterada sem reforço; ou seja, sem aqueles componentes que a fizeram
marcante quando adquirida: um choque elétrico no caso de um aprendizado
aversivo, comida no caso de um aprendizado alimentício, a resposta no caso de
um número telefônico, o pagamento no caso de um serviço prestado. A simples
passagem do tempo é outro fator no esquecimento. Influi mais, claramente,
quanto pior tenha sido a gravação original: é mais fácil esquecer um número
telefônico de um cinema, aprendido ontem, que um fato marcante da infância. A
interferência retrógrada é outro fator.
Os sonhos
consistem na evocação desorganizada de memórias em combinações muito variadas e
de diferente grau de complexidade, geralmente incluindo interações entre
memórias muito antigas e muito recentes, e entre ambas e o estado anímico e o
emocional do sujeito, antes ou durante o sono. Não se conhecem os mecanismos da
evocação utilizados nos sonhos; é provável que incluam fatores neuro-humorais e
hormonais e, ao mesmo tempo, estímulos externos eventualmente percebidos
durante o sono. .
Amnésia é a perda de memórias preexistentes
(amnésia retrógrada), ou a incapacidade de formar memórias novas (amnésia
anterógrada). A perda total de memórias, anterógrada e retrógrada, se denomina
amnésia global, esta é, geralmente, transitória e reversível, e se observa após
grandes traumatismos cranianos ou acidentes vasculares cerebrais com edema
cerebral. A lesão bilateral da amígdala e do hipocampo provoca amnésia
anterógrada pura, explicável pela supressão do principal núcleo modulador e do
principal mecanismo seletor, respectivamente. A amnésia retrógrada ocorre quase que
invariavelmente associada com outros múltiplos déficits cognitivos.
“Nenhum dia é igual
ao outro. A multiplicidade, a variedade e a diversidade, pela própria essência
energética superior, estão sempre se impondo sobre a unicidade! (EM).)”
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